José Gomes Farias (meu pai, de branco) ladeado pelo governador do distrito
e do presidente do Rotary Internacional.
O Patriarca
Por José Gomes Farias (1964)
Depois de São Francisco, não sei se outro homem conseguiu fazer-se estimar tanto pelos animais, quanto meu pai. O Patriarca de Assis, operando milagre, infundiu num lobo esfaimado, mansidão de cordeiro. Meu pai, sem milagre nenhum, transformava em amigos de que se cercava. Vi muitos touros entrarem no pátio jogando terra no lombo, urrando baixinho, manifestando num gemido surdo, toda a cólera de que estava possuído e meu pai ir-lhe ao encontro, armado unicamente com sua voz mansa e uma vasilha contendo sal. O animal terminava lambendo o sal e deixando, indiferente, que meu pai lhe coçasse o pescoço potente, perto dos chifres afiados.
Canzarrões mordedores, terror das crianças e das mulheres, o que, à aproximação deles, os homens coçavam instintivamente, perto do cós da calça, do lado em que traziam o facão de vinte e duas polegadas, arrastarem-se pesadamente, atendendo ao chamado do meu pai, ou simplesmente quando ele estalava, repetidas vezes, o polegar e o médio, num gesto característico de convite que somente os cães entendem.
Apesar de ser um amigo dos animais, ou por isso mesmo, não permitia que os filhos trouxessem para casa, um filhote de cutia, um macaquinho, um pássaro. Quando um de nós tentava aprisionar um sabiá, meu pai energicamente se opunha. Se insistíamos, ele falava da liberdade que íamos roubar e de outras coisas mais a que pouca atenção prestávamos. Quando ele desconfiava que seu argumento não convencia, encerrava a questão com aquela palavra a que nada mais podíamos acrescentar: NÃO.
Logo após as primeiras chuvas de inverno, as laranjeiras se cobriam de flores, impregnando o ambiente de um perfume de sonho. Os sabiás acorriam de todos os lados para a grande festa da NATUREZA, enchendo o ar de música e os galhos da laranjeira, de ninhos. Porém, a nós só era permitido olhar tudo isso, de longe.
Ninguém, entretanto, consegue fugir à mutabilidade que a vida impõe no correr dos tempos. Alguns anos antes de sua morte, passei a ver, em minhas constantes visitas aos velhos, um ou dois papagaios trepados nas travessas da cozinha. Como entraram naquela casa, nunca cheguei a saber ao certo. Acredito que meu pai foi vencido por minha irmã nesse terreno em que tanta resistência oferecera. Esta deve ter lançado mão de todos os meios, inclusive de suas prerrogativas de caçula.
Um dos louros tornou-se quase inseparável de meu pai. Logo que ele entrava em casa, o papagaio voava ao seu encontro, se os separava considerável distância. Se acontecia estar no portão quando meu pai entrava, num gracioso esticar de pescoço, pendurava-se pelo bico, em sua camisa. Às vezes subia pela perna da calça, indo aboletar-se no seu ombro, onde ficava catando imagináveis bichinhos atrás da orelha do seu dono. Meu pai tirava-o dali carinhosamente, pondo-o no chão ou jogando-o para o alto, facilitando-lhe o vôo para o teto da cozinha ou para uma árvore próxima. Antes, porém, dava-lhe repetidos beijos na cabeça, dizendo-lhe palavras amáveis.
Quando meu pai saía pelos arredores da casa procurando um pau de lenha, tocando um bezerro para o curral ou apenas estirando suas pernas cansadas num passeio saudável, o seu companheiro verde e amarelo acompanhava-o em vôos rasantes sobre sua cabeça. Esse louro não havia sido privado de sua liberdade, pelo menos depois que eu o conheci. A maior parte do tempo em que meu pai não estava em casa, ele passava nas copas das árvores mais altas, muitas vezes em companhia de seus irmãos bravios.
Essa ave transformou-se, com certeza, num inconsciente instrumento de tortura para minha mãe e meus irmãos. É possível que no momento em que anoto essas coisas, ele ainda esteja voando de uma árvore para outra nos arredores do sítio, seguindo o mesmo itinerário por onde meu pai passeava nas tardes tristes.
(Embora essa crônica acima seja meu pai homenageando seu próprio pai (meu avô) esta postagem é em homenagem ao MEU PAI, que hoje completaria 83 anos de idade)
11 comentários:
Que homenagem linda mana.
Ah, adorei a foto, ta lindona.Paz!
Rê,
Muito lindo este texto! Lembrei do meu avô que era apaixonado por bichos, também. E também tinha dois papagaios que eram apaixonados por ele.
Que o nosso Pai Celestial encha seu coração de Paz e consolo, nesta data que, certamente, é meio complicada pra você.
Grande abraço!!
Regina,
Mas que maravilha de crônica... Tem todos os ingredientes necessários para prender a atenção do leitor: excelente narrativa, beleza na construção, sem prejuízo do cuidado e zelo com as letrinhas.
Parabéns ao seu pai e ao seu avô, ainda que "in memorian".
Como eu disse outrora, se bem me lembro, "gosto deles" (rsrsrs).
Grande abraço!
Ricardo.
Gente,
Obrigada pelo carinho.
Fico muito feliz apesar da saudade.
Beijos!
Regina,
eu simplesmente não sei o que dizer diante desse texto tão preciso, soberbo e lindo. Tão ricamente ilustrando a vida simples e bela de uma família feliz por ter um bom pai, um bom avô...
Realmente é algo muito instrutivo, inspirador e de uma poesia que pode ser lida na história contada mais do que nas linhas escritas.
Essa é uma homenagem que caberia, a cada pai e avô, que trouxe doçura ao seio familiar.
Parabéns!
Paz!
Wendel Bernardes
Wendel,
Pouco conheci do meu avô, pois o mesmo se foi quando eu ainda era garotinha.
Quanto a meu pai, ele era meio "caxias" mas à medida que fomos amadurecendo iamos entendendo seu estilo rigoroso.
Se bem que só hoje é que eu tenho essa lucidez.
E, pra ser sincera, também não posso dizer que fomos uma família perfeita, mas posso garantir que meus pais nos passaram valores éticos com muita firmeza e não com palavras, mas com a própria conduta. Isso é inegável, tendo refletido nas nossas vidas e sou muito grata por isso.
Valeu pelo carinho.
Beijo,
Rê.
Regina,
Às primeiras horas do dia de hoje, lembrei que era o aniversário de papai.
Quando Tio Raimundo esteve aqui nos dias recentes, lembramos estórias e histórias do grande magnetismo que ele exercia sobre nós e os seus alunos, a ponto de que esses se identificavam tanto que o procuravam imitar em gestos e expressões, como a um ídolo e guru. Oremos por ele.
Demóstenes,
Que satisfação ter um comentário seu aqui no meu humilde espaço rss
Você definiu sucintamente exatamente o que ele representou principalmente para os jovens.
Valeu e tá intimido a comentar sempre :)
Beijo grande pra ti!
Rê.
Ah, e que tal orarmos por nós mesmos que ainda estamos por aqui? rsss
oops! intimado he he
Rê...
Li seu texto e fiquei "triste". Acho que consegui me colocar no papel dos bichinhos que tanto amaram seu avô da maneira deles, demonstrando o carinho e afeto através de pequenos gestos, como o "procurar bichinhos imaginários" na orelha do vovô.
Me deu saudade de algo que não vivi, entende?
De tudo isso, só consigo imaginar que esta "unção de São Francisco" (aff) deva ter sido derramada em todas as pessoas de sua família, pois "acabei de conhecer" seu avô através do relato de seu pai, assim como pude conhecer um pouco dele pela maneira que ele descreveu seu avô...
Você eu já conheço através de seus escritos. Em comum, várias pessoas maravilhosas.
Sei lá, tô com vontade de chorar...
Beijos minha amada amiga!
JC
J.C.
Não se engane, não tão maravilhosas assim rss
São pessoas cheias de falhas e defeitinhos chatinhos iguais a todo mundo.(Abafa!)
Mas conseguir colocar tanta poesia no papel assim demonstra a vontade - se não de ser maravilhoso, mas de ver/viver um mundo maravilhoso.
Fico impressionada com essa arte da escrita, principalmente quando a prosa é pura poesia. E acho que é isso que te toca de maneira assim tão profunda.(Também já te conheço rss)
Beijo grande!
Rê.
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