“Não sejas demasiadamente justo”
Eclesiastes 7.16
Eclesiastes 7.16
Ao que o Eclesiastes se refere? Quais os seus motivos para aconselhar assim? Ele contradiz o senso comum religioso e merece atenção. As conotações de um breve versículo são diversas.
Não se exceda em justiça. O inferno do legalista queima em fogo lento. De boca tesa, o santarrão caleja os nervos; vara anos sem rir. Ele apaga as luzes ao seu derredor para o mundo permanecer soturno. Para o piegas os critérios da lei serão inclementes na pele dos outros e passíveis de interpretação quando exigem que ele fure um olho ou ampute uma perna. Na Bíblia, o fariseu exibe sua demagogia numa esquina e o pecador, alvo da misericórdia é acolhido por Deus. Na história, Jean Valjean ilumina a vida e Javert morre no abismo devido à justiça implacável e inegociável que lhe mobilizou.
Não se pretenda perfeito. A casa do puro, caiada de branco, lembra os sepulcros – sem mancha no exterior e podre por dentro. Sem nunca suar, o perfeito se escandaliza com as inadequações alheias; sempre voluntarioso para erguer um cadafalso para quem tem qualquer defeito que lembre os seus, esquece que a misericórdia não chega aos que vivem impiedosamente. O argueiro no olho do outro o importuna mais que a trave no seu.
Não se veja irrepreensível. O caminho do imaculado se alonga em veredas de solidão. Encerrado em seu casticismo, o puro teme se contaminar com o próximo. Qualquer amizade o intimida. O saltimbanco que brinca à luz do dia, o tortura. O prazer o esmaga. Qualquer desejo o empurra para a culpa.
Não se considere abnegado demais. A vida do altamente comedido o faz inodoro, insosso, incombustível. Revoltado com os que se arriscam, ele não tolera erros. Intransigente, apedreja os que tombam tentando. Onipotente quanto à sua moderação, menospreza o coxo que se supera, o vacilante que se expõe e o inseguro que ousa.
Não se arvore de ser correto. O convívio com o lúcido, que se vê portador da verdade, é chato. Julgando-se guardião do absoluto, o correto se assume mensageiro exclusivo do divino e conquistador da ignorância universal. Ele vive convicto de ter o manejo do ruah (espírito) divino. Dogmático, projeta sombra sobre a beleza da poesia, já que as verdades devem ser organizadas como uma marcha militar.
Não se coloque como exato. O mundo do beato se alicerça na aparência. Ele precisa de máscara, fantasia, cera, qualquer coisa para encobrir concavidades na alma, agudezas no espírito e asperezas no coração. Agachado por detrás de conceitos decorados, prefere contraprovar um argumento a ter que encarar a subjetividade no seu interior.
Prefira ser humano, demasiadamente humano. Só os fortes se sabem frágeis e só os mansos, os que optam pela não-violência, herdarão o porvir. Os imperfeitos, não os probos santos, provam o doce mel da graça. Os defeituosos, vazios de se pretenderem divinos, serão elogiados por Deus. Só no desprezo ao poder se encontra a vida.
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