"NÃO EXISTE NENHUM LUGAR DE CULTO FORA DO AMOR AO PRÓXIMO"

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domingo, 16 de maio de 2010

Fragmentos de uma Carta Aberta...





CARTA ABERTA AOS BISPOS CATÓLICOS DO MUNDO


Hans Küng - Professor emérito de Teologia Ecumênica na Universidade de Tübingen (Alemanha) e presidente do Projeto Ética Mundial.








Joseph Ratzinger, atual Bento XVI, e eu, éramos, entre 1962 e 1965, os dois teólogos mais jovens do Concílio. Agora já somos os mais idosos e os únicos que seguem plenamente na ativa. Eu sempre entendi o meu trabalho teológico também como um serviço à Igreja. Por isso, preocupado com esta nossa Igreja, atolada na crise de confiança mais profunda desde a Reforma, dirijo-lhes uma carta aberta no quinto aniversário do pontificado de Bento XVI. Não tenho outra possibilidade de chegar até vocês.

(...)
Minhas esperanças, e as de tantos católicos e católicas comprometidos, infelizmente, não se realizaram, coisa que fiz saber ao papa Bento de diversas formas em nossa correspondência. Sem dúvida, cumpriu conscienciosamente suas obrigações papais cotidianas e nos brindou com três Encíclicas úteis sobre a fé, a esperança e o amor. Mas, no tocante aos grandes desafios de nosso tempo, seu pontificado se apresenta cada vez mais como o das oportunidades desperdiçadas, não como o das ocasiões aproveitadas:

Desperdiçou-se a oportunidade de um entendimento duradouro com os judeus.
Desperdiçou-se a oportunidade de um diálogo assentado na confiança com os muçulmanos.

Desperdiçou-se a oportunidade da reconciliação com os povos nativos colonizados da América Latina.

Desperdiçou-se a oportunidade de ajudar os povos africanos.

Desperdiçou-se a oportunidade de concluir a paz com as ciências modernas.

Desperdiçou-se a oportunidade de que também o Vaticano faça, finalmente, do espírito do Concílio Vaticano II a bússola da Igreja católica, impulsionando suas reformas.

Este último ponto, estimados bispos, é especialmente grave. Uma e outra vez, este Papa relativiza os textos conciliares e os interpreta de forma retrógrada contra o espírito dos Padres do Concílio. Inclusive se situa expressamente contra o Concílio ecumênico, que, segundo o Direito Canônico, representa a autoridade suprema da Igreja católica:

– Readmitiu incondicionalmente na Igreja os bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, ordenados ilegalmente fora da Igreja católica e que não aceitam o Concílio em aspectos fundamentais.

– Apóia com todos os meios a missa medieval tridentina e ele mesmo celebra ocasionalmente a eucaristia em latim e de costas para os fiéis.

Não leva a cabo o entendimento com a Igreja anglicana, assinado em documentos ecumênicos oficiais (ARCIC). Ao contrário, procura atrair para a Igreja católico-romana sacerdotes anglicanos casados renunciando a aplicar a eles o voto do celibato.

Reforçou os poderes eclesiais contrários ao Concílio com a nomeação de altos cargos anticonciliares (na Secretaria de Estado e na Congregação para a Liturgia, entre outros) e bispos reacionários em todo o mundo.

(...)

E agora, às muitas tendências de crise ainda são adicionados escândalos que clamam aos céus: sobretudo o abuso de milhares de meninos e jovens por clérigos – nos Estados Unidos, Irlanda, Alemanha e outros países –, relacionado a uma crise de liderança e confiança sem precedentes. Não se pode silenciar que o sistema de ocultamento posto em prática em todo o mundo diante dos crimes sexuais dos clérigos foi dirigido pela Congregação para a Fé romana do cardeal Ratzinger (1981-2005), na qual, já sob João Paulo II, foram reunidos os casos sob o mais estrito segredo. Ainda em 18 de maio de 2001, Ratzinger enviava um escrito solene sobre os crimes mais graves (Epistula de delitos gravioribus) a todos os bispos. Nela, os casos de abusos se situavam sob o secretum pontificium, cuja revelação pode atrair severas penas canônicas.
(...)
As consequências de todos estes escândalos para a reputação da Igreja católica são devastadoras. Isto é algo que também já foi confirmado por dignitários de alto escalão. Inúmeros padres e educadores de jovens irrepreensíveis e sumamente comprometidos sofrem sob uma suspeita generalizada. Vocês, estimados bispos, devem colocar-se a pergunta de como serão as coisas no futuro em nossa Igreja e em suas dioceses. Contudo, não queria esboçar um programa de reforma; já fiz isso em repetidas ocasiões, antes e depois do Concílio. Apenas queria colocar-lhes seis propostas que, na minha convicção, serão respaldadas por milhões de católicos que carecem de voz.

1. Não calar: em vista de tantas e tão graves irregularidades, o silêncio torna vocês cúmplices. Ali onde consideram que determinadas leis, disposições e medidas são contraproducentes, deveriam, ao contrário, expressá-lo com a maior franqueza. Não enviem a Roma declarações de submissão, mas demandas de reforma!

2. Acometer reformas: na Igreja e no episcopado são muitos os que se queixam de Roma, sem que eles mesmos façam alguma coisa. Mas hoje, quando numa diocese ou paróquia não se vai à missa, quando o trabalho pastoral é ineficaz, quando a abertura às necessidades do mundo limitada, ou quando a cooperação é mínima, não se pode culpar sem mais Roma. Bispo, sacerdote ou leigo, todos e cada um devem fazer algo para a renovação da Igreja em seu âmbito vital, seja maior ou menor. Muitas grandes coisas nas paróquias e na Igreja inteira aconteceram graças à iniciativa de indivíduos ou de pequenos grupos. Como bispos, vocês devem apoiar e alentar tais iniciativas e atender, agora mesmo, as queixas justificadas dos fiéis.

3. Agir colegiadamente: depois de um debate vivo e contra a sustentada oposição da cúria, o Concílio decretou a colegialidade do Papa e dos bispos no sentido dos Atos dos Apóstolos, onde Pedro também não agia sem o colégio apostólico. No entanto, na época pós-conciliar os papas e a cúria ignoraram esta decisão central do Concílio. Desde que o Papa Paulo VI, já no segundo ano do Concílio, publicara uma Encíclica em defesa da discutida lei do celibato, voltou a se exercer a doutrina e a política papal ao estilo antigo, não colegiado. Inclusive na liturgia o Papa é apresentado como autocrata, em relação a quem os bispos, dos quais gosta de se rodear, aparecem como comparsas sem voz nem voto. Portanto, vocês não deveriam, estimados bispos, agir só como indivíduos, mas em comunidade com os demais bispos, com os sacerdotes e com o povo da Igreja, homens e mulheres.

4. A obediência ilimitada só se deve a Deus: todos vocês, ao serem consagrados como bispos, juraram obedecer incondicionalmente ao Papa. Mas vocês sabem igualmente que nunca se deve obediência ilimitada a uma autoridade humana, só a Deus. Por isso, o voto de vocês não deve impedi-los de dizer a verdade sobre a atual crise da Igreja, de suas dioceses e de seus países. Seguindo em tudo o exemplo do apóstolo Paulo, que enfrentou Pedro e teve que se opor “a ele abertamente, pois assumira uma atitude errada” (Gl 2, 11)! Uma pressão sobre as autoridades romanas no espírito da fraternidade cristã pode ser legítima quando estas não concordam com o espírito do Evangelho e sua mensagem. A utilização da linguagem vernacular na liturgia, a modificação das disposições sobre os matrimônios mistos, a afirmação da tolerância, a democracia, os direitos humanos, o entendimento ecumênico e tantas outras coisas só serão alcançados pela tenaz pressão vinda de baixo.

5. Buscar soluções regionais: é frequente que o Vaticano faça ouvidos moucos a demandas justificadas do episcopado, dos sacerdotes e dos leigos. Com tanto maior razão se deve buscar de forma inteligente soluções regionais. Um problema especialmente espinhoso, como vocês sabem, é a lei do celibato, proveniente da Idade Média e que está sendo questionado com razão em todo o mundo precisamente no contexto dos escândalos por abusos sexuais. Uma modificação contra a vontade de Roma parece praticamente impossível. Contudo, isto não nos condena à passividade: um sacerdote que depois de madura reflexão pensa em se casar não tem que renunciar automaticamente ao seu estado se o bispo e a comunidade o apoiarem. Algumas conferências episcopais poderiam proceder a uma solução regional, mesmo que fosse melhor chegar a uma solução para a Igreja em seu conjunto. Portanto:

6. Exigir um Concílio: assim como se requereu um Concílio ecumênico para a realização da reforma litúrgica, da liberdade religiosa, do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, o mesmo acontece com o problema da reforma, que irrompeu agora de forma dramática. O Concílio reformista de Constança, no século anterior à Reforma, aprovou a realização de Concílios a cada cinco anos, disposição que, contudo, foi ignorada pela cúria romana. Sem dúvida, esta fará agora quanto estiver ao seu alcance para impedir um Concílio do qual deve temer uma limitação de seu poder. Em todos vocês está a responsabilidade de impor um Concílio ou ao menos um sínodo episcopal representativo.

(...)
Nesta situação de necessidade, os olhos do mundo estão postos em vocês. Inúmeras pessoas perderam a confiança na Igreja católica. A recuperação só valerá a pena se os problemas e as consequentes reformas forem abordados de forma franca e honrada. Peço-lhes, com todo o respeito, que contribuam com o que estiver ao seu alcance, quando for possível em cooperação com o resto dos bispos; mas, se for necessário, também individualmente, com “coragem” apostólica (At 4, 29-31). Deem aos seus fiéis sinais de esperança e alento e à nossa Igreja uma perspectiva.
Saúdo vocês na comunhão da fé cristã, Hans Küng.


Extraído do blog Um Eterno Aprendiz



No final da década de 1960, Küng iniciou uma reflexão rejeitando o dogma da Infalibilidade Papal, publicada no livro Infallible? An Inquiry ("Infalibilidade? Um inquérito") em 18 de janeiro de 1970.

Em consequência disso, em 18 de dezembro de 1979, foi revogada a sua licença pela Igreja Católica Apostólica Romana de oficialmente ensinar teologia em nome dela, mas permaneceu como sacerdote e professor em Tübingen até a sua aposentadoria em 1996.

Em 26 de setembro de 2005, ele e o Papa Bento XVI surpreenderam ao encontrar-se para jantar e discutir teologia.

Küng defende o fim da obrigatoriedade do celibato clerical, maior participação laica e feminina na Igreja Católica e o retorno da teologia baseada na mensagem da Bíblia.

Fonte: Wikipedia
Grifos/negritos meus-RF.

3 comentários:

Eduardo Medeiros disse...

REgina, bem oportuna a sua postagem dessa carta do Kung que sempre foi um católico aberto ao diálogo inter-religioso e crítico das ideias, da moral e da teologia arcaicas da instituição católica.

Mas como sempre aconteceu, as vozes dissonantes sempre foram caladas pelo poder centralista papal.

Não tarda muito para que a igreja católica e seu estado do vaticano tornem-se apenas momumentos de uma época em que a impossição e o dogmatismo falavam mais alto do que o diálogo, a mudança que tráz novos ares e o amor.

a frase

"juraram obedecer incondicionalmente ao Papa. Mas vocês sabem igualmente que nunca se deve obediência ilimitada a uma autoridade humana, só a Deus"

é de uma lógica que nenhum católico pode contestar.

abraços

João Carlos disse...

Minha oração é que tenha se levantado um novo reformador...

Regina Farias disse...

A verdade é que questões "maiores" sempre estão em primeiro lugar.

Reza a lenda que quando Lutero começou a abrir o olho do povo, o papa "perdeu a oportunidade" de fazer uma reforma porque estava FIXADO na construção da famosa Basílica de São Pedro justamente à custa das tais indulgências.

Falou mais alto "a obra".

Durma com uma bronca dessas!

R.