"NÃO EXISTE NENHUM LUGAR DE CULTO FORA DO AMOR AO PRÓXIMO"

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segunda-feira, 26 de abril de 2010

A FESTA DE BABETTE - Uma parábola da GRAÇA





Em ambiente triste, uma pobre aldeia de pescadores no litoral da Dinamarca, uma localidade de ruas lamacentas e cabanas cobertas de palha - um ministro da Palavra de Deus, já idoso e de barbas brancas - liderava um grupo de crentes de uma austera seita luterana.

Todos usavam roupas pretas e os poucos prazeres mundanos eram condenados.

Sua alimentação consistia em bacalhau cozido e uma papa feita de pão escaldado em água enriquecida com um borrifo de cerveja.

Aos sábados, o grupo se reunia e cantava hinos a respeito da Nova Jerusalém, verdadeiro lar, indicando que a vida na terra era apenas tolerada como um meio de chegar lá.

O velho pastor, um viúvo, tinha duas filhas adolescentes: Martine, chamada assim por causa de Martinho Lutero, e Philippa, por causa do discípulo de Lutero, Philip Melanchton.

Os habitantes da vila costumavam ir à igreja apenas para se deliciar com a presença das duas, cuja radiante beleza não podia ser ocultada, por mais que elas se esforçassem nesse sentido.

Martine captou os olhares de um jovem e arrojado oficial da cavalaria.

Quando ela, obstinadamente, resistiu às suas investidas — afinal, quem cuidaria de seu velho pai? — ele foi embora para se casar com uma dama de companhia da rainha Sofia.

Philippa, além de bela, possuía a voz de um rouxinol.

Quando ela cantava a respeito de Jerusalém, visões reluzentes da cidade celestial pareciam surgir.

E aconteceu que Philippa conheceu o mais famoso cantor de ópera daquele tempo, o francês Achille Papin, que estava passando uns dias no litoral por causa da saúde.

Certo dia, durante uma de suas caminhadas matinais ouviu, para sua grande admiração, uma voz digna da Grand Opera de Paris.

"Deixe-me ensiná-la a cantar de maneira certa", ele insistiu com Philippa, "e toda a França vai cair a seus pés. A realeza vai fazer fila para conhecê-la, e você vai andar de carruagem puxada por cavalos para jantar no magnífico Café Anglais ".

Lisonjeada, Philippa consentiu em tomar algumas lições, mas apenas algumas.

Cantar a respeito do amor a deixava muito agitada e, culminou quando, ao som de uma ária de Don Giovani, Achille Papin a enlaçou em seus braços, roçando-lhe os lábios nos seus;foi então que ela angustiou-se com a certeza de que estes novos prazeres precisavam ser abandonados.

Seu pai escreveu um bilhete dispensando o jovem de todas as futuras lições, voltando este a Paris, com muita tristeza na alma.

Passaram-se quinze anos, e muita coisa mudou na vila.

As duas irmãs, então solteironas de meia-idade, tentaram continuar com a missão do falecido pai, mas, sem a sua séria liderança, a seita decaiu.

Um irmão tinha queixas de outro por causa de algum negócio.

Espalharam-se boatos de que havia um caso de sexo ilícito há trinta e dois anos envolvendo duas pessoas da comunidade. Duas velhas senhoras não se falavam há uma década.

Embora a seita ainda se reunisse aos domingos e cantasse velhos hinos, apenas um punhado de pessoas se davam ao trabalho de ir, e a música havia perdido o seu entusiasmo.

Apesar de todos esses problemas, as duas filhas do ministro continuaram fiéis, organizando os cultos e escaldando pão para os anciãos desdentados da vila.

Uma noite, chuvosa demais para que alguém se aventurasse pelas ruas lamacentas, as irmãs ouviram fortes batidas na porta.

Quando a abriram, uma mulher caiu desmaiada. Elas a reanimaram e descobriram que ela não falava dinamarquês. Ela lhes entregou uma carta de Achille Papin.

Ao ver aquele nome, Philippa enrubesceu, e sua mão tremia enquanto ela lia a carta de recomendação. Seu nome era Babette.

"Babette sabe cozinhar", dizia a carta.

Ela havia perdido o marido e filho durante a guerra civil na França. Com a vida em perigo, tivera de fugir e Papin lhe arranjara uma passagem em um navio com esperança de que essa aldeia lhe demonstrasse misericórdia.

As irmãs nunca tiveram uma empregada nem tinham dinheiro para pagar Babette .

Além do mais, desconfiaram de sua arte — os franceses não comiam cavalos e rãs?

Mas, por meio de gestos e súplicas, Babette amoleceu o coração delas.

Ela poderia fazer alguns serviços em troca de quarto e comida.

E assim, durante os doze anos seguintes Babette trabalhou para as irmãs.

A primeira vez que Martine mostrou-lhe como cortar um bacalhau e cozinhar a papa, as sobrancelhas de Babette se elevaram e o seu nariz enrugou um pouco, mas nunca questionou suas tarefas. Ela alimentava os pobres na cidade e assumiu todas as tarefas domésticas.

Até ajudava nos cultos de domingo.

Todos concordavam que Babette trouxe nova vida à estagnada comunidade.

Como Babette nunca se referia ao seu passado na França, foi uma grande surpresa para Martine e Philippa quando, um dia, depois de doze anos, ela recebeu a primeira carta.

Babette a leu, viu as irmãs de olhos arregalados e anunciou de maneira natural que uma coisa maravilhosa lhe havia acontecido.

Todos os anos um amigo em Paris renovava o número de Babette na loteria francesa. Nesse ano, o seu bilhete fora premiado. Dez mil francos!

As irmãs apertaram a mão de Babette, parabenizando-a, mas lá no fundo seus corações desfaleceram. Sabiam que logo ela iria embora.

A sorte grande de Babette na loteria coincidiu com o momento em que as irmãs estavam discutindo sobre a celebração de uma festa em homenagem ao centenário do nascimento de seu pai.

Então, considerando que em doze anos nunca lhes pedira nenhum favor, Babete lhes fez um pedido.

-“Quero cozinhar uma verdadeira refeição francesa para a comemoração de aniversário"

As irmãs tiveram que concordar embora tivessem sérias dúvidas a respeito do plano de Babette.

Quando o dinheiro chegou da França, Babette fez uma rápida viagem para providenciar os arranjos para o jantar. Nas semanas que se seguiram à sua volta, os habitantes daquela pequena vila foram surpreendidos com a visão de vários barcos ancorados descarregando provisões para a cozinha de Babette. Trabalhadores empurravam carrinhos de mão cheios de gaiolas com pequenas aves. Caixas de champanhe — champagne! — e vinho logo se seguiram.

A cabeça inteira de uma vaca, vegetais frescos, trufas, faisões, presunto, estranhas criaturas que viviam no mar, uma imensa tartaruga ainda viva mexendo a cabeça como a de uma cobra de um lado para o outro — tudo isso acabava na cozinha das irmãs agora firmemente dirigida por Babette.

Martine e Philippa, alarmadas com os preparativos que mais pareciam de bruxa, explicavam a embaraçosa situação aos membros da seita, agora apenas onze pessoas, velhas e grisalhas e como todos manifestavam simpatia por elas, acabaram concordando em comer a refeição francesa, fazendo o pacto de silenciar-se para não constranger a cozinheira com sua culinária exótica.

As irmãs ficaram satisfeitas ao saber que um hóspede inesperado se juntaria a elas: a senhora Loewenhielm, de noventa anos de idade, acompanhada de seu sobrinho, o oficial de cavalaria que havia cortejado Martine tempos atrás, e agora era general no palácio real.

Babette havia conseguido louças e cristais, e havia enfeitado o recinto com velas e coníferas deixando a mesa bastante ornamentada.

Quando a refeição começou os habitantes da aldeia se serviam mudos, lembrando-se do pacto.

Apenas o general comentou a comida e a bebida. "Amontillado!", ele exclamou quando levantou o primeiro copo. "É o mais fino Amontillado que já provei."

Quando experimentou a primeira colherada de sopa, o general poderia jurar que era sopa de tartaruga, mas como se acharia tal coisa no litoral da Jutlândia?

"Incrível!", disse o general quando experimentou o próximo prato. "É Blinis Demidoff!"

Todos os outros convidados, com faces franzidas por profundas rugas, estavam comendo as mesmas delicadezas raras sem nenhuma expressão ou comentário.

Quando o general entusiasmado elogiou o champanhe, um Veuve Cliquot 1860, Babette ordenou ao seu ajudante de cozinha para manter o copo do general cheio o tempo todo. Apenas ele parecia apreciar o que estava diante dele.

Embora ninguém mais falasse a respeito da comida ou da bebida, gradualmente o banquete operou um efeito mágico sobre os habitantes da aldeia.

O seu sangue esquentou. Suas línguas se soltaram. E eles falaram dos velhos dias quando o pastor estava vivo e do Natal em que a baía congelou.

O irmão que havia enganado o outro nos negócios finalmente confessou, e as duas mulheres que tinham uma rixa acabaram conversando.

Uma mulher arrotou, e o irmão ao seu lado disse sem pensar: "Aleluia!".

O general, entretanto, não conseguia falar de nada além da comida.

Quando o ajudante da cozinha trouxe o coup de grâce, codornizes preparadas em Sarcophage, o general exclamou que vira tal prato apenas em um lugar na Europa, no famoso Café Anglais em Paris, o restaurante que já fora célebre por ter uma mulher como chefe-de-cozinha.

Cheio de vinho, o apetite satisfeito, incapaz de se conter, o general levantou-se para fazer um discurso, assim iniciando:

"A misericórdia e a verdade, meus amigos, se encontraram".

"A justiça e a bem-aventurança se beijaram."

Embora os irmãos e as irmãs da seita não compreendessem totalmente o discurso do general, naquele momento "as vãs ilusões desta terra se dissolveram diante de seus olhos como fumaça, e eles viram o universo como ele realmente era".

O pequeno grupo se desfez e saiu para uma cidade coberta de neve brilhante sob um céu recoberto de estrelas.

A "Festa de Babette" termina com duas cenas.

Lá fora, os velhos se dão as mãos ao redor da fonte e cantam entusiasmados os velhos hinos da fé.

É uma cena de comunhão: a festa de Babette abriu o portão e a graça entrou silenciosamente.

Eles sentiram, acrescenta a autora, "como se realmente tivessem os seus pecados lavados e tornados brancos como a lã, e nessas vestes inocentes recuperadas faziam brincadeiras como cordeirinhos travessos".

A cena final acontece lá dentro, na bagunça de uma cozinha cheia até o teto de louça para lavar, panelas engorduradas, conchas, carapaças, ossos cartilaginosos, engradados quebrados, cascas de vegetais e garrafas vazias. Babette senta-se no meio da bagunça, parecendo tão desgastada quanto na noite em que chegara doze anos antes. Subitamente, as irmãs percebem que, de acordo com o seu voto, ninguém havia falado com Babette a respeito do jantar.

— Foi um jantar e tanto, Babette — Martine diz para começar. Babette parece distante. Depois de um minuto ela responde: — Eu era a cozinheira do Café Anglais.

—Todos nós vamos nos lembrar desta noite quando você tiver voltado para Paris, Babette — Martine acrescenta, como se não a tivesse ouvido.

Babette lhes diz que não vai voltar para Paris. Todos os seus amigos e parentes ali foram mortos ou feitos prisioneiros. E, naturalmente, seria muito caro voltar para Paris.

— Mas e os dez mil francos? — as irmãs perguntam.

Então Babette deixa cair a bomba. Ela havia gasto tudo, cada franco dos dez mil que ganhara, na comida que haviam acabado de devorar. — Não se assustem — ela lhes diz. — É isso que um jantar adequado para doze custa no Café Anglais.

No discurso do general, Isak Dinesen não deixa dúvidas de que ela escreveu "A Festa de Babette" não apenas como uma história a respeito de uma excelente refeição, mas como uma parábola da graça: um presente que custa tudo para o doador e nada para o que recebeu. Isto é o que o General Loewenhielm disse aos carrancudos paroquianos reunidos ao redor da mesa de Babette:

Todos nós fomos informados de que a graça deve ser buscada no universo. Mas em nossa loucura humana e nossa visão reduzida imaginamos que a graça divina seja finita... Porém, chega o momento em que nossos olhos são abertos, e vemos e entendemos que a graça é infinita. A graça, meus amigos, não exige nada de nós a não ser que a aguardemos com confiança e a reconheçamos com gratidão.

Doze anos antes, Babette aparecera entre aquelas pessoas desprovidas de graça.

Discípulas de Lutero que ouviam sermões a respeito da graça quase todos os domingos e no restante da semana tentavam obter o favor de Deus com a sua piedade e renúncia, a graça veio até elas na forma de uma festa, a festa de Babette, por meio de uma refeição desperdiçando uma vida inteira sobre aqueles que não a haviam merecido, que mal possuíam a faculdade de recebê-la.

A graça veio àquela vila como sempre vem: livre de pagamento, sem cordas amarradas, como oferta da casa.

Fragmento extraído de "Maravilhosa Graça" de Philip Yancey, A FESTA DE BABETTE é uma história de Karen Blixen, que tornou-se um clássico respeitado depois de ser transformado em filme na década de 80. Com o psudônimo de Isak Dinesen, situou sua história na Noruega, mas os cineastas dinamarqueses mudaram o local para essa aldeia de pescadores.

6 comentários:

Ever.TON disse...

Eu li o livro h´alguns meses e também achei magnífica essa ilustração.

Quero ser assim, um saboreador da Disposição Divina, me entregar a Sua Conspiração e entender que todo esse banquete não me custou nada, mas tudo ao Doador.

abs

Eder Barbosa de Melo disse...

Maravilhoso! Fiquei arrepiado lendo esta história. Muitas pessoas me recomendaram este livro de Philip Yancey, já li alguns títulos dele e imagino que deve execelente como os outros. A festa de Babette será exibido na aula de sociologia nesse semestre, fiquei ainda mais curioso pra assistir ao filme. Abraço!

Regina Farias disse...

Oi, Everton

Quanto tempo!

Bonito e verdadeiro isso que você sintetizou em tão poucas palavras.

E eu também quero ser assim como você tão bem ilustrou... :)

Volte sempre!

R.

Regina Farias disse...

Então, Éder

O interessante é que quando vi o filme eu não tinha essa lucidez que tenho hoje, embora na época, ainda não convertida, já questionava esse lance de seguir algumas exteriores regrinhas básicas para ficar bem com Deus.

Naquela comunidade extremamente religiosa/ritualística havia tanto rigor, tanta exigência, tanta inflexibilidade... E os corações cheios de rancor e maus hábitos. Os bons costumes só faziam parte da performance. E fazem ainda! E como isso é atual!
Mas aí o amor derramado neutraliza tudo isso de maneira desconcertante mesmo!

Graças a Deus!

Abs...

R.

René disse...

Rê,

Não falei que eu devia ter conhecido seu blog bem antes? Que maravilha!!!

Primeiro, me ficou muito fácil entrar na estória, por ter passado a infância e parte da adolescência dentro da igreja Luterana. A única dificuldade foi imaginar casebres na Dinamarca! rsssss

Segundo, em um dia de miserabilidade latente e exposta, olhei pra cima, pensei falando com o Deus Criador e, poucos minutos depois, encontrei a Sua Maravilhosa Graça, de graça pra mim, mas com alto custo pra Ele! Não foi na festa de Babette, mas bem que poderia ter sido. Quantas vezes estive em situações parecidas, sem me dar conta disso tudo! Quanto me arrependo por não ter agradecido convenientemente a tais pessoas, mesmo que elas próprias não tivessem a consciência disto!

Valeu por me indicar este texto, amada amiga!!!

Abração e continue na Paz!

HP disse...

uau!

Que texto!

Gostei! Vou ver se acho o filme pra assistir.