"Perguntou-lhe Jesus:
Mulher, por que choras?
A quem procuras"?
(João 20.15)
Inevitavelmente me vêm lembranças estranhas nesse feriadão...
Nascida em lar católico e estudando em colégio de freiras, quando criança e adolescente esses eram os dias mais tristes da minha vida, enquanto coadjuvante de uma verdadeira comoção coletiva, vindo à tona de maneira muito deprimente a história do sofrimento pessoal e da perseguição política que Jesus sofreu em seus últimos dias terrenos.
A igreja que frequentávamos e a capela do colégio ficavam mais sinistras ainda do que os meus olhos costumavam ver, com todas aquelas imagens enormes vestidas de cima a baixo com mantos roxos que me davam medo. (Ainda hoje tenho certa reserva pela cor roxa tão na moda atualmente)
Para completar todo aquele ambiente baixo-astral, havia as tradicionais procissões que, em apelo contagiante, carregavam grande conteúdo dramático com uma tremenda carga emocional que nos imputava enorme sentimento de culpa e de pena. Eu me sentia muito mal e o coração apertado me silenciava. E me silenciou durante muito tempo. (Sem contar quantas vezes fui queimada com aquela vela que eu tinha que carregar.)
E assim fui crescendo e vivendo em meio a essa tradição que dentro do contexto histórico-cultural e religioso nos primeiros séculos era um recolhimento natural em rememoração aos últimos dias de Jesus e que, com o passar do tempo- inclusive para o catolicismo que adora um cerimonialismo - foi se tornando obrigatório, enfatizando-se até o que se deve e o que não se deve comer, recheado com suas famosas regras e religiosidades. Aliás, como de fato ocorre em todos os tradicionalismos adotados pelo homem e que findam por desvirtuar o real sentido das coisas através dos tempos.
Por outro lado, não sou contra festividades religiosas, principalmente como essas duas tão significativas: na passagem do AT, o povo de Deus foi liberto da escravidão egípcia; na passagem do NT, o povo de Deus é liberto pelo eterno sacrifício da Cruz. Essas duas Alianças de Deus com o seu povo marcaram mudanças radicais e assim como os judeus comemoravam a libertação do seu povo, a nossa libertação pelo sacrifício na Cruz também "merece" comemoração. E muito mais, já que se trata da Eterna Aliança. E todos os dias, posto que é a celebração pela Vida!
Para mim, entretanto, a grande questão é o tradicionalismo como obrigação constituindo-se um risco quando se preserva o que foi determinado pelo homem, tornando-se inevitável o fato da tradição ser utilizada como máscara de santidade. Esse é o risco. Bem enfatizou o autor de Hebreus que a experiência espiritual cristã é dinâmica, justamente ao povo escolhido que estava desistindo da fé na Graça de Deus, em Cristo, anulando o sacrifício da Cruz. Voltando a velhos ritos, práticas e crenças legalistas, devido a toda sorte de opressão, foram perdendo o sentido da palavra hebreu que é fruto da desinstalação, da capacidade de andar para adiante, de cruzar fronteiras. (A raiz semítica da palavra “hebreu” determina estado constante de progressão).
Quantos de nós, cristãos, anulamos hoje em dia o sacrifício da Cruz com práticas, crenças, normas e regras inúteis, desnecessárias e ineficazes!Quantos de nós, ainda não entenderam que a relação conflituosa de Deus com os homens nada tem a ver com regras! Inclusive, diga-se de passagem, que os únicos sacrifícios que a Ele importam são o louvor a Ele e a cooperação entre os homens.
Não sou teóloga nem falo em nome de nenhuma denominação, mas leio, pesquiso e particularmente, observo com certa curiosidade, mudanças de hábitos até mesmo em instituições religiosas que adotam a abstinência de carne, como por exemplo, quando um tempo atrás um sábio arcebispo em Porto Alegre, considerando os apegos modernos, surpreendeu os católicos afirmando que ingerir carne não se constituía em pecado, não havendo nenhuma proibição e sim uma tradição, sugerindo inclusive outros tipos de penitências, já que hoje em dia os excessos são outros e as pessoas não se regalam tanto em alimentos, principalmente a carne vermelha abastada, que era a tônica nas festas antigas, juntamente com a bebida. Hoje em dia a própria lei seca já reprime a prática dessa última, o que nos diz claramente que a tradição se perde conforme o contexto histórico em que se vive.
Não poderia, entretanto, deixar de citar a analogia da carne vermelha que, segundo os adeptos, estaria fortemente associada à Paixão, já que durante o Seu martírio, Jesus havia perdido todo o conteúdo de sangue em seu corpo; eu até entendo que, certamente é como se toda aquela forte lembrança associada impregnasse certa repugnância ao cardápio em questão. Porém, o que se percebe é que muitas pessoas comemoram toda essa passagem, seguindo rigorosamente as regras e cerimonialismos de forma mecânica e coletiva, deixando de lado o que mais importa: o exame diário dos nossos pensamentos, das nossas palavras e das nossas ações em relação ao próximo, sem perceber que o resto é prática inútil.
Ora, se eu morri com Cristo, sujeitar-me às ordenanças do mundo é um contra-senso, uma infantilidade espiritual; ou seja, por que renunciar comer ou beber isso ou aquilo em determinado dia, já que podemos comer isso ou aquilo em qualquer dia, desde que seja com bom senso e moderação? (Cf Cl 2: 20,23)
Enfim, nada disso tem a ver com pecado, rituais e muito menos com oferenda a deuses como sugerem desavisados denominacionais em extremo oposto, que associam erroneamente essa data a eventos pagãos, quando na verdade esse evento ocorreu justamente no Pessach, data em que os judeus comemoram a fuga e libertação de seu povo escravizado no Egito.
(O próprio Evangelho de João – este foi o evangelista que viveu mais próximo de Jesus - propõe uma cronologia que aponta a última ceia de Jesus para a data dessas festividades judaicas.)
E principalmente, porque a Paixão de Cristo nada tem a ver com tradições, paganismos, comida e bebida, e sim com o cumprimento das Escrituras de maneira que Deus se reconciliasse com a sua criação, tornando ineficaz qualquer sacrifício que tente aperfeiçoar ao que Lhe preste culto.
Por isso, no momento que Jesus morreu imediatamente o Véu do Santuário foi rasgado de cima a baixo numa clara demonstração do livre acesso a Deus, que nada tem a ver com questões morais e sim, relacionais.
O véu do templo era uma cortina pesada ficando entre o Lugar Santo e o Santo dos Santos e sua presença era uma lembrança constante da separação entre a humanidade e Deus. O fato de ter sido rasgado em duas partes, de cima a baixo significa a remoção de qualquer barreira que existia entre Deus e qualquer pessoa que aceite o sacrifício de Jesus na Cruz, que penetra além do véu.
Finalmente...
Nós não temos capacidade de expiar nossos próprios pecados, por isso Jesus o fez por nós.
Sacrifício pessoal e auto-flagelo não interessam a Deus, daí não concordar com essa história de penitências que para mim é algo contraditório e desnecessário, já que o sacrifício da Cruz é perfeitamente suficiente.
“Está tudo feito para que em mim possa ser feito”.
Ele ressuscitou e vive para sempre!
E o Seu Sangue purifica a todo aquele que crê... Independentemente do cardápio da Semana Santa.
E, claro, se escolher beber... Que o faça com moderação.
RF
"Eis que o véu do santuário
se rasgou em duas partes
de alto a baixo".
de alto a baixo".
(Mt 27.51a)
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