Parece que foi ontem...
Hoje ele faria 82 anos, mas já se vão 30 que ele não está mais nestas paragens de cá.
Muito mais que um mero professor, meu pai foi um educador visionário que abrigava em sua própria casa, alunos potencialmente ilustres que vinham das fazendas ou distritos vizinhos e até de cidades de outros estados.
Eu era muito pequena, mas me lembro como se fosse hoje daquele imenso salão cheio de armadores de rede e livros espalhados que ficava lá nos fundos da nossa casa.
Ainda muito jovem e com uma multidão de filhos, ele conservava hábitos religiosos moderados, indo à missa todos os domingos, às seis da manhã, quase sempre sozinho. Silencioso, reflexivo, solene. Tanto na ida quanto na volta. Sem alarde, sempre de terno de linho branco. Impecável e conforme a época dos anos sessenta. Não sendo um homem de atitudes religiosas (ainda bem) ensinou ética com atitude (ainda bem!)
Homem de caráter rigoroso escolheu ocultar com maestria um coração de manteiga que só se manifestava melhor nas ações beneméritas junto à associação rotariana que presidia ao longo de anos consecutivos e por votação unânime... Ou mais ainda, quando um filho se prostrava, aí sim, ele expunha a alma, agindo com presteza.
Quer saber? Arrisco-me a dizer que meu pai era mesmo um romântico incurável escondendo-se debaixo de uma máscara de ferro que certamente o violentava e é disso que eu mais desconfio.
De atitude e natureza explosiva, estranhamente só explodia no seio familiar. Lá fora era um doce, um pacifista, um conciliador. Um bonachão.
Ah, ele ficava sério quando punha os pés em sala de aula e, embora aparentemente sisudo, esse era talvez seu maior prazer; pois até o cargo de diretor de escola desde muito cedo ele preferiu delegar à minha mãe.
Isso de filho apresentar boletim com boas notas não era nenhum mérito e sim obrigação; passando em concurso muito cedo e/ou vestibular hiper mega concorrido de universidade federal aos 16/17 anos de idade?! Não fez mais que a obrigação! E até podia faltar a roupa da festa mas jamais o livro do colégio e posteriormente a apostila da faculdade.
Isso de filho apresentar boletim com boas notas não era nenhum mérito e sim obrigação; passando em concurso muito cedo e/ou vestibular hiper mega concorrido de universidade federal aos 16/17 anos de idade?! Não fez mais que a obrigação! E até podia faltar a roupa da festa mas jamais o livro do colégio e posteriormente a apostila da faculdade.
Entretanto, embora fosse um rígido educador, adorava receber os amigos mais íntimos, trocar idéias, ler poemas de J.G. de Araújo Jorge, contar e ouvir piadas. E eu, junto! Quantas vezes ele dizia: vem Regina, ouvir essa, tu que gostas de safadeza. Ele tinha esses lances assim controversos. Se de um lado, não saía de sua boca sequer um palavrão, de outro ele apreciava uma piada sutil e bem articulada. Essa era a tal “safadeza”. E eu sempre presente, lá pelos meus 15, 16 anos e já irreverente, dando minhas risadas características que ainda me marcam hoje em dia.
Lembro-me com muita clareza quando chegava o Natal e nós nos empenhávamos em dormir cedo pra Papai Noel colocar os presentes. E mal amanhecia já começava aquele barulho de um mais apressadinho abrindo seu presente, depois outro e outro, e em poucos minutos lá estávamos todos no quarto do casal mostrando inocentemente, olha o meu, olha o dela, que lindo, ai adorei, papai, mamãe, vejam só isso! E ele, escondendo um sorriso satisfeito no olhar, repetia várias vezes com voz mansa e olhadas furtivas pra minha mãe: Esse Papai Noel é um gastador - e, olhando pra ela, rindo- Esse Noel é umbo$#@ ... (Aliás, esse era o palavrão que ele usava somente em casa, na intimidade e pra tudo, em situação de irritação ou de alegria; e quando ele queria usar de forma carinhosa com um filho, dizia: “seu b*$#!inha” – e ainda hoje o imitamos, confesso rss)
Lembro-me com muita clareza quando chegava o Natal e nós nos empenhávamos em dormir cedo pra Papai Noel colocar os presentes. E mal amanhecia já começava aquele barulho de um mais apressadinho abrindo seu presente, depois outro e outro, e em poucos minutos lá estávamos todos no quarto do casal mostrando inocentemente, olha o meu, olha o dela, que lindo, ai adorei, papai, mamãe, vejam só isso! E ele, escondendo um sorriso satisfeito no olhar, repetia várias vezes com voz mansa e olhadas furtivas pra minha mãe: Esse Papai Noel é um gastador - e, olhando pra ela, rindo- Esse Noel é um
Mas o homem era bravo, viu?! Sai de baixo!
E quando chegava em casa, ao descobrir que um amigo ganhara um par de enfeites na cabeça?! Nossa! Virava uma arara era com minha mãe, como se o enfeite pesado fosse na própria cabeça, passando uma semana azedo, mau-humorado. E quem era doido pra chegar perto? Parecia um enlutado/revoltado. Um bicho que foi ferido.
Educador até o último fio de cabelo, foi Secretário de Educação em várias gestões diferentes. Mas daí não passava! Sem jamais ceder ao fascínio do poder recusava todos os convites para ingressar no meio político. Circulando com familiaridade nesse meio, sua recusa se firmava no risco de se corromper em tal comando.
De gosto refinado curtia os clássicos (de quem herdei), Jackson do Pandeiro e Luís Gonzaga. E como todo descendente luso que se preza, um bom fado também fazia parte de sua coleção. Nunca vou me esquecer: Francisco José, era o nome do dono daquele vozeirão característico.
Representante quase exclusivo do Rotary local, onde preciso fosse lá estava ele, de norte a sul do país, abrilhantando sua região por meio de retórica peculiar, apaixonado e apaixonante, cativando a todos com seu arregaçar de manga na essência dos objetivos rotários. Seus textos escritos nas revistas periódicas foram parar no Rotary do Tio Sam, onde o presidente à época fez vários comentários - extensos e intensos - em relação à sua atuação exemplar como membro dessa associação filantrópica.
Autodidata, estudioso, pesquisador, possuía biblioteca vasta.
Homem lúcido, abominava alienação, crendice, superstição, lenda... De quem herdei também de maneira muito forte.
Assim era esse fascinante homem de natureza ímpar e paradoxal.
Um homem socialmente articulado, que tinha uma função determinante na comunidade em que vivia.
Charmoso e elegante, no meio social era sempre alegre, simpático, carismático.
Na rua era tão espirituoso que quando perguntavam “essa tropa é toda sua, professor?!” – Ele respondia bem-humorado: “A mãe deles diz que sim”, enquanto dava uma piscadela marota para um terço dos filhos que abarrotavam o carro.
No lar era o Caxias que trazia a tropa na linha.
Também pudera!
Família grande dá nisso.
13 filhos - uma escadinha, como se dizia - não é brincadeira se educar em tempo algum. Ainda mais em uma época e circunstância como aquela em que ele era o responsável direto por um número considerável de alunos quase da mesma faixa etária que os filhos dele; uma época em que educar alunos era tarefa praticamente igual à de educar filhos.
O exemplo teria que ser dado começando dentro de casa.
Ah, se todos captassem a mensagem dessa forma... Muito divã de analista teria sido poupado (risos). Pois eu percebo com muita lucidez, e acima de tudo com senso de justiça que, para ele, parecia que o importante mesmo era essa demonstração de amor assim rigorosa. E eu acredito que ele bem sabia lá no fundo da alma que o maior sentido da vida é amar e aquela era a forma de amar que ele conhecia.
Cumprindo seu papel na íntegra.
Não digo com perfeição, claro!
Mas digo sem medo de errar: com responsabilidade e competência.
Sendo acima de tudo, ético.
Esse foi o seu legado.
"Ensina a criança no caminho em que deve andar,
e, ainda quando for velho, não se desviará dele".
(Provérbios, 22.6)
9 comentários:
Olha, dá até saudade do seu pai... mesmo sem tê-lo conhecido.
O seu relato sobre o seu pai me fez lembrar o livro autobiográfico do Amós Oz, "De amor e trevas". Não sei o quê, mas as histórias têm algo em comum - mas como são muito diversas, talvez seja mesmo a forma da narrativa.
Ricardo.
Ricardo
Suas palavras carinhosas me emocionaram.
Não li esse livro e agora me deu curiosidade rss
E meu pai era um sonhador que viveu fora de época...
Valeu!
R.
Fiquei emocionado, e com aquela vontade de ter tido um pai assim.
Fique na paz e no amor de Deus!!!
Olha, Mário
Engraçado que mesmo amando-o mais ainda na sua ausência, eu só tive mesmo essa consciência de que ele foi o melhor pai do mundo depois de adulta (véia, digamos rss).
E é porque eu fui uma das poucas que não ficou assim tãaooo traumatizada com seu estilo caxias doméstico. (Ai ai, os outros vão me matar rss)
Mas eu acho que é porque eu me casei novinha... vai saber :P
Valeu pelas palavras carinhosas. Me fez chorar.
R.
Confesso que não li toda a postagem, só o início me deixou com saudade do meu pai, e não quero chorar como no dia dos pais. O Hermes Fernandes publicou um texto que me fez chorar...
Obrigado pelas visitas e comentários no meu blog.
Abraços!
Oi, Max!
Eu fui ler o texto do Hermes e engraçado como sempre um ou outro detalhe tem a ver com a gente.
Eu lia e me lembrava da relação de amizade e confiança que eu, desde novinha, tinha com meu sogro que também já "partiu dessa" e que era um homem incrível dedicado exclusivo à família e fora do "si-mesmo"; e não gosto da expressão "perdi" pois quem perdeu não sabe onde está e eu prefiro meu devaneio...
Ele desabafava muito comigo quando eu era casada e, morando fora, vinha passar uns dias em Recife.
Ah, meu pai também assobiava rsss e ele o fazia rindo, sabe?
E na maturidade é que se entende que só com a consciência de dever cumprido pra assobiar rindo... Ele assobiava enquanto lavava as mãos - e a pia também! - algo que ele fazia com muita frequência e não por neurose mas como prática comum de um homem extremamente limpo e higiênico em época que simples germes não provocavam tantas devastações... Imagine!
E quanto a não ter coragem de ler eu te entendo pois alguns dos meus próprios irmãos, não têm coragem também; os que leem ficam silenciosos cada um com suas prórias impressões; no máximo me ligam ou mandam e-mail; um dos muitos que moram fora, (esse sim, escreve coisas incríveis) leu ontem mesmo e me ligou dizendo que já repassou pra todos os filhos e alguns amigos; e que acrescentaria mais algumas coisas rss porém considerando que cada um faz sua leitura pessoal :)
Ah, mas caberia em um livro - eu lhe respondi, mesmo ele já sabendo -pois homenagem mesmo é um velho sonho por meio de um livro que venho rabiscando desde quando me pediram pra escrever algo sobre ele há uns anos.
E livros "rabiscados" de histórias diferentes eu tenho alguns rss só enchendo arquivos... :)
Enfim,
O que eu quero dizer, com esse meu terrível defeito prolixo rss é que não tem homenagem, não tem texto, não tem livro, não tem palavras que sejam suficientes para definir ou ilustrar uma vida inteirinha de dedicação AO OUTRO.
Abs...
R.
Reproduzo aqui o que me escreveu por e-mail o meu tio que mora em Brasília.
Regina.
Nunca tinha visto uma pessoa, um filho, um parente, descrever tão bem sobre um ser querido, como você o fez neste aniversário do Zé Farias.
Falou com a alma, falou como filha, falou como pessoa que admira.
Hoje tentei ler para Luiza e Joaquim, o seu artigo sobre Zé Farias, o qual foi interrompido várias vezes pela emoção de nossa parte.
Quero agradecer-lhe e incentivá-la a escrever mais e mais, pois você tem um potencial extraordinário.
Vou aí só lhe dar um cheiro de agradecimento.
Pretendo fornecer alguns dados que provavelmente não chegaram à suas mãos, para vc. ter uma idéia mais precisa sobre as dificuldades que seu pai enfrentou para chegar ao ponto que chegou e a oportunidade que ele teve de dar a nós (eu, Jesus, Ezequiel e demais parentes) uma chance de vida melhor e menos difícil, dificuldades estas que começaram a ser superadas pelo meu pai, seu avô, Ezequiel.
Aceite um abração do tio que a admira.
Raimundo.
Seu pai foi uma benção né amiga?, tinha amor ao que fazia e aos filhos, e vivia bem, pode se dizer que foi um homem feliz. Parabéns pelo pai que teve mana. Paz!
Rô,
Brigadinha pela participação ainda que tardia rss. Admiro você por isso, sempre presente com uma palavra carinhosa.
Beijos,
Rê.
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