"NÃO EXISTE NENHUM LUGAR DE CULTO FORA DO AMOR AO PRÓXIMO"

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sexta-feira, 13 de abril de 2012

Sobre a descriminalização do aborto de anencefálicos

(Ex facto oritur jus - Do fato nasce o direito, a lei.)



Mesmo quando ainda não se cogitava regulamentação no Brasil nesse sentido, houve inúmeros casos em que se teve permissão judicial de interrupção de gestação por anencefalia. Portanto, essa questão é antiga, inclusive com pesquisas junto à sociedade cujas estatísticas têm ampla percentagem voltada ao direito de decisão pessoal. Ora, minha gente. Não se chega a um tema desses diante do judiciário da noite para o dia; nem sem antes passar pelo crivo do povo, considerando tanto a dolorosa decisão radical quanto a situação não menos dramática de quem levou a gravidez a termo. E não há porque se alarmar pois trata-se de descriminalização, ou seja, não se constitui em crime a decisão que se tome.  Não há determinação de nenhum extermínio. Descriminalizar significa, em linguajar mais simples, deixar de ser crime. A opção passa a ser pessoal, conforme a própria consciência. Agora, a mulher já pode, amparada pela lei e apoiada pelo seu médico de confiança, fazer escolhas e tomar decisões conscientes sobre seus dramas pessoais. Isso é avanço, isso é exercício de democracia na verdadeira acepção da palavra.

Eu vejo assim: a gestante, ou melhor, o casal, tem o direito de decidir por manter ou não uma gravidez nessas condições.  Por mais que apareçam representantes de entidades religiosas reforçando ‘o caráter constitucional do direito à vida’, é um direito da mulher decidir se mantém a gravidez ou se a interrompe. Ela sabe que não há chances de sobrevida. E quem vai ter esse poder de exigir que ela complete a gravidez nesses termos?  Não podemos ser extremistas e nos apegarmos, mecanicamente, à simples frase: a vida começa na concepção. Pois há relatividade nela e inúmeras são as situações em que essa suposta vida necessita ser interrompida, como no caso específico da anencefalia.

E mais: trata-se de uma gravidez de risco para a mãe, requerendo acompanhamento constante, tendo entre outros problemas, o descolamento prematuro da placenta. Segundo explicação técnica, a anencefalia é incompatível com a vida e corresponde à morte cerebral, por não haver atividade cortical. ‘Aproximadamente 75% dos fetos anencefálicos morrem dentro do útero. Dos 25% que chegam a nascer, todos têm sobrevida vegetativa que chega a 24 horas na maioria dos casos’.

Segundo dados de 2003 da Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o quarto país em frequência de anencefalia. A interrupção da gravidez, nesses casos, é permitida na Europa, no Canadá, nos Estados Unidos, na China e, mais recentemente, no Irã (desde 2004) e na Argentina (desde 2003), entre outros países.

Contudo, há ainda quem se manifeste contra a interrupção com a alegação de que não se pode considerá-lo como feto morto. O argumento é de que não se pode prever quanto tempo uma criança com anencefalia pode viver. Mesmo sabendo que cerca de 1% vive por três meses, outras crianças podem chegar a dez meses e, algumas, podem viver até um ano e dois meses. Alegam ainda que o aborto do anecéfalo junta duas questões: o aborto e a eutanásia, considerando que 'essa é uma prática que não deixa de ser uma eutanásia’. Inclusive há casos raros em que a própria mãe decide que a gravidez venha a termo, geralmente por pressão religiosa, mesmo estando ciente acerca de suas tristes e dolorosas consequências. (E a prática da eutanásia, assim como alguns tipos de aborto, também são casos específicos que devem ser considerados. Mas isso é outro assunto).

Em minha opinião, deve se considerar, acima de tudo, a decisão pessoal do casal. Ou da mulher, se não houver casal. Ela é quem sabe do drama pessoal que está enfrentando e que tal angústia é relativa apenas a ela. E que, principalmente, não cabe a uma cúpula religiosa de plantão decidir algo que é unicamente a sua consciência que deve decidir. Aliás, religioso deveria passar longe de questão assim, para não ceder à tentação de deixar aflorar a demagogia arraigada. Além do mais, não há como se esperar democracia por parte de um religioso de carteirinha pois este jamais poderia ser classificado como um democrata. Ironicamente, os que falam tanto em nome de Deus, deveriam respeitar a dor de quem vive tal situação e compreender que só Deus sonda os corações e só Ele sabe da angústia e das limitações de cada um; paradoxalmente, os que tanto alegam sobre a 'vontade de Deus', não creem no Deus que vê o coração, e que não julga com a mesma medida que o homem julga.

E cabe, sim, aos setores técnicos e jurídicos, acompanharem a dinâmica da vida no sentido de promoverem cada vez mais uma existência de qualidade para o ser humano. Dentro da ética e da dignidade pessoal. 

Há quem apele, colocando o anencefálico erroneamente como ‘excepcional’ e até fazendo comparação tosca com o portador de ‘Síndrome de Down’. Entretanto, qualquer criança de sete anos sabe que são duas situações completamente diversas. E, discordando de um amigo que acredita que tal decisão 'abre precedentes', eu vou além dizendo que bom que abre precedentes. Pois vejo com muita tranquilidade tudo que está acontecendo. Não vejo pelo lado ‘terrorista’, não há motivo para pânico. Não se trata de nova forma de extermínio à la Adolf. E se fosse (perdão pela ironia) seria um lento extermínio, até porque, de acordo com a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, a incidência de casos de anencefalia é em torno de um para cada mil nascidos vivos. E, ainda assim, a livre decisão acerca do destino desse 'um' continua sendo dos pais. O que significa que não paramos no meio do caminho e que estamos avançando em relação aos nossos direitos de escolha conforme a nossa própria consciência.   
Bendito Estado Laico!

RF

Leitura complementar:


'Em abril de 2004, o CNTS (Conselho Nacional dos Trabalhadores em Saúde) e a ONG ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) apresentaram ao STF uma ADPF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. O objetivo é que o STF julgue constitucional o direito de interrupção da gravidez em casos de anencefalia.
A iniciativa das organizações foi motivada por um requerimento que o STF recebera meses antes. Dizia respeito a uma autorização para interrupção da gravidez de uma jovem de 18 anos, de Teresópolis (RJ), com diagnóstico de feto anencefálico. O parto, com a morte do bebê apenas sete minutos depois, ocorreu antes de decisão da Justiça sobre o abortamento.
Depois de analisar o pedido, o ministro relator, Marco Aurélio Mello, aprovou a ADPF 54. Assim, durante três meses, entre julho e setembro de 2004, a mulher que quisesse interromper a gravidez em caso de anencefalia não necessitava de alvará judicial. No entanto, após forte oposição de alguns setores da sociedade, a liminar foi cassada pelo Supremo em outubro daquele ano, sob argumento de que precisava de melhor análise.
Em 2008, pela primeira vez, o Supremo fez uma convocação para audiências públicas e ouviu testemunhos pessoais, exposições técnicas, científicas e jurídicas sobre anencefalia. Dois então ministros também participaram das audiências, o da Saúde, José Gomes Temporão, e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire.
As conclusões das audiências foram claras: o diagnóstico de anencefalia é feito com 100% de certeza; a anencefalia é uma condição irreversível e letal em 100% dos casos; a gestação de um feto anencefálico é de maior risco para a mulher; a interrupção da gestação, nesse caso, não deve ser tratada como aborto, mas como antecipação terapêutica do parto e a anencefalia não se confunde com deficiência. A anencefalia é uma condição de inviabilidade de vida extrauterina.
Assim, desde outubro de 2008 até o início de 2011, o processo ficou aguardando entrada em pauta. Em março de 2011, o ministro Marco Aurélio apresentou o seu relatório, com uma descrição geral do processo, e pediu pauta para julgamento. O presidente, ministro Cezar Peluso, marcou o julgamento para o dia 11 de abril.
Em abril de 2009, a AGU, Advocacia Geral da União, emitiu parecer favorável à antecipação terapêutica do feto nos casos de anencefalia, com base na Constituição Federal, o que alimentou a esperança pela aprovação da ADPF 54'.

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Principais teses em defesa:
Luís Roberto Barroso (Professor titular de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que formulou e apresentou a ação no STF).
Em primeiro lugar, a interrupção da gestação em caso de feto anencefálico não constitui aborto, mas sim de fato atípico, segundo o jargão jurídico. “Nós ainda acrescentamos nesse tópico que não há, no Direito brasileiro, uma definição do momento em que tem início a vida, porém existe uma definição do momento da morte: é quando o cérebro para de funcionar. A lei de transplantes de órgãos considera a morte como a morte cerebral, encefálica. Nós argumentamos que, no caso do feto anencefálico, ele não chega nem a ter um início de vida cerebral, porque o cérebro não se forma”.

O segundo ponto da defesa é que o Código Penal prevê duas situações em que o aborto não será criminalizado: quando a gravidez interrompida é resultado de estupro ou quando a gestação gera grave risco para a vida da mãe.

“Nesses dois casos, o feto tem potencialidade de vida, porém o legislador, ponderando a potencialidade de vida do feto com a vida da mãe, ou com a violência física e moral sofrida pela mulher, permite a interrupção da gravidez. No caso da anencefalia, essa potencialidade de vida não existe. Portanto, a interrupção da gestação é menos drástica, é menos gravosa do que nos dois casos já previstos no código penal”, afirma Barroso.

Segundo ele, o código penal só não prevê expressamente a anencefalia como uma das exceções para a criminalização do aborto porque, quando foi elaborado, em 1940, não havia possibilidade de se fazer o diagnóstico.

Por fim, a última base para sustentar a defesa do aborto em caso de anencefalia é a da dignidade da pessoa. Barroso diz que um dos componentes da ideia do princípio da dignidade da pessoa humana é o direito à integridade física e psicológica. Obrigar uma mulher a levar a gestação de um bebê anencefálico adiante significaria ferir esses direitos.

Nós consideramos que essa imposição de um prolongamento do sofrimento inútil dessa mulher viola a dignidade da pessoa humana. Nós sustentamos que esse é um momento de tragédia pessoal na vida da mulher. Algumas mulheres querem levar a gestação a termo, outras não querem. Cada um tem o direito de se comportar de acordo com seu sentimento e sua convicção. O Estado não tem o direito de tomar essa decisão pela mulher”, conclui.

Para Barroso, o Brasil está muito atrasado na discussão do aborto. Mais ainda, o País está em marcha ré quando se fala em anencefalia. Segundo ele, pouquíssimos países do mundo, mesmo na América Latina, criminalizam a interrupção da gestação no caso de feto anencefálico e de fetos inviáveis em geral.

“A questão da anencefalia é uma questão muito menor, porque nem todas as implicações éticas do aborto estão presentes aqui, de modo que eu acho que essa é uma discussão menor. Nós estamos atrasados nessa matéria. Nenhum país democrático e desenvolvido impede a mulher de interromper a gestação no caso de anencefalia”.

Dizer que liberar o aborto em caso de anencefalia pode abrir precedente perigoso para eugenia, segundo Barroso, é levar a discussão para um terreno perigoso.

Não há criança anencefálica, não há adulto anencefálico. Portanto, quem suscita o propósito dessa discussão a temas como eugenia, ou está desinformado ou está de má fé. A eugenia não tem nenhuma relação com o que está sendo tratado aqui. O que está em jogo é a autonomia da mulher, é o direito da mulher em escolher como ela vai atravessar o seu próprio sofrimento”.



Entendendo um pouco mais sobre o tema:

O PROCESSO DE DESCRIMINALIZAÇÃO DE ABORTO DE ANENCÉFALO NO BRASIL

SUPREMO LIBERA ABORTO POR ANENCEFALIA: SAIBA ONDE JÁ SE PODE FAZÊ-LO



6 comentários:

Anônimo disse...

Gostei da sua opinião, também acho que não é motivo para tantos alarmes, apenas, a mãe terá o direito de escolha. Acho que algumas pessoas só conseguem enxergar a palavra "ABORTO".
Pessoal, sabemos que só quem tem o direito de tirar a vida é Deus, mas não esqueçamos das particularidades e, também, que Deus trata com cada um da maneira que Ele sabe que é certo.
Leiam mais sobre a Anencefalia.

Regina Farias disse...

Taí um anônimo ponderado.
Só tá 'errado' porque é anônimo. (risos)

Anônimo disse...

assino embaixo, reconheço firma e rubrico todas as linhas

Regina Farias disse...

Cláudio,

Como falei lá no 'feici', muito me alegra ter pessoas com a sua sobriedade dando seu 'aval' a um escrito desta natureza.

Pra você ter noção, esse texto já ma rendeu rapidinho o 'título' de apóstata. Não sei se achei mais engraçada a repressora mensagem velada em meio ao rótulo ou se ria do rótulo em si. (Pra quem já foi chamada de Jezebel isso não é nada rss)

Enfim, adoro pagar um preço para exercer a verdadeira liberdade em Cristo que não passa pelo crivo denominacional.

No mais, repito o que diz o sábio anônimo acima: vamos ler mais sobre Anencefalia. A maior questão do conceito pré-concebido é a falta de informação.

E não vamos ler apenas um depoimento de drama pessoal; não vamos nos limitar a ler depoimentos apenas de um ou outro ministro que se opôs...

Valeu!

R.

Anônimo disse...

é mana, nós somos os apóstatas, eles os santos, mas liga não, pois geralmente o que é elevado diante dos homens é abominação diante de Deus. Paz.

Márcio biólogo disse...

Irmã Regina.

Como falou em democracia, me encorajou escrever discordando. Muito antes de ser crente, já era contra o aborto em qualquer situação, e continuo sendo, mais ainda por princípios (não denominacionais).

Independente do tempo de sobrevida do feto (criança, ser humano), ou do risco à gestante, penso no aspecto prático. O que estou praticando? Enfim, o que estou fazendo é certo? O que estou interrompendo?

E minha fé, não permite vislumbrar a esperança de um milagre? Pois confio em Deus... De qualquer maneira, será que um feto anencefálico não sofre, não sabe o que está acontecendo? Não tem direito a poucas horas ou poucos minutos de vida?

Bom, faço essas perguntas em forma de reflexão para somar e não para contender. Continuarei respeitando quem tem essa opinião, mas discordarei dessa prática sempre.

Deus abençoe.