Ando lendo Fernando Pessoa.
Não seus poemas e tratados, mas suas cartas íntimas.
Escritas de Lisboa ao amigo Cortes-Rodrigues nos anos entre 1914 e 1916, quando a Europa se debatia nos horrores da primeira guerra. Nego-me a chamá-la de “grande”, para mim toda guerra é pequena, posto que o é em seus motivos e propósitos.
Confesso que me sinto intruso em um universo secreto feito, não para mim ou para os que as leem hoje, mas para aquele em quem confiava o coração do poeta, a ponto de lhe falar de suas crises emocionais, seus desertos criativos, suas frequentes depressões, suas ambições revolucionárias… a ponto de lhe pedir - com frequência, diga-se - dinheiro emprestado. Até nisso as cartas me consolam. Notem que, diferentemente do que se diz alhures, a condição econômica nada tem a ver com o gênio dos homens ou com as empresas a que se dedicam. A história está cheia de “quebrados” brilhantes, com imorredouros legados. Mas não façamos disso uma virtude… Há aqueles que nem sábios, nem doutos, nem empreendedores são apenas desafortunados, no sentido etimológico da palavra.
Pessoa é uma alma outonal.
Lendo-o sinto o vento frio e cortante das tardes em que caem descansadas as folhas na capital lusitana. Na verdade, ele deveria se chamar Fernando Pessoas, já que seus heterônimos - outros nomes com que escrevia - são pessoas completas, com data de nascimento e morte, com quem dialoga o poeta. Ele não simplesmente os cria, ele cria neles, ele sofre e convive com eles. Imagino ser o resultado da busca de convivência, de laços comunais, na vida de quem a solidão machucava tanto. Esta é a razão pela qual, no final de cada carta, Fernando não apenas pedia que seu amigo lhe escrevesse logo de volta, mas, também, que o fizesse longamente.
O ser humano não foi feito para a solidão, esta lhe é agressiva e enlouquecedora. Os generais sabem disso, e fizeram da “solitária” uma das mais severas e profundas torturas. Não precisam bater, humilhar ou ameaçar o detento. Basta deixá-lo sozinho, sem acesso a sons, imagens ou figuras; sem que se dê conta se é dia ou noite; sem que sinta sequer a presença das sombras externas, como no Mito da Caverna de Platão. Quando um homem é posto assim, em absoluto isolamento, a sua própria mente se converte em seu mais cruel algoz.
É num contexto como este que a nossa natureza animal revela um dos mais curiosos expedientes de adaptação e sobrevivência. No início, o ser isolado começa a conversar consigo mesmo, fala de suas raivas e frustrações; relembra a sua caminhada e as razões que o levaram àquela punição; pensa no que fará assim que sair dali. Contudo, não demora muito até que este solilóquio seja interrompido por um “mas”. Após a adversativa vem o esforço de compreender o “outro lado do assunto”. O monólogo se transforma em debate interior, como nos filmes de desenho-animado em que um diabinho fala à altura de um dos ombros e um anjo se coloca na posição oposta. O diálogo interno, tantas vezes uma salutar relação dialética interior, vai se fixando e as “personas” vão se cristalizando. Não tarda para surgir o necessário mediador entre os dois, uma terceira voz. Outras muitas vão chegando à medida que o isolamento prossegue. Se a liberdade não chegar logo, ao ser solto e se perguntar: Qual é o teu nome? Corre-se o risco de ter como resposta: “legião, porque somos muitos”.
Os nossos irmãos, monges tibetanos - se Francisco chamava o sol e a lua de irmãos, como não chamaria de irmãos seres humanos como eu - desenvolveram, após milênios de estudo e meditação, uma forma de aplacar esta fome voraz da alma por companhia. Chamam de Nirvana, um estado de quietude da mente, conduzindo-a, como quem poda bonsai, à uma libertação da tirania dos pensamentos, manifesta em uma condição profunda de silêncio emocional. Acho isso tudo lindo, mas prefiro um bom e simples “papo de mesa de bar”, técnica desenvolvida pelos “monges” cariocas de neutralizar o processo de multifacção da mente. Compreenderam que a melhor maneira de evitar que a sua mente se divida e fale um monte de besteiras é permitir que outras mentes o façam, ao sabor de um filé com fritas, tão essencial para os últimos sábios, quanto o incenso é para os primeiros.
A verdade é ainda mais antiga do que todas as até aqui referidas. Foi dita pelo Criador pouco antes da história humana começar: “não é bom que o homem esteja só”.
Nada que é realmente significativo e importante se faz sozinho. A arte da vida é viver com e para os outros, sem ter a necessidade de viver como os outros. Aprender a ser quem é, em respeito e comunhão com todos que são como são, na certeza de que tanto nós quanto eles somos “um processo”.
Nada que é realmente significativo e importante se faz sozinho. A arte da vida é viver com e para os outros, sem ter a necessidade de viver como os outros. Aprender a ser quem é, em respeito e comunhão com todos que são como são, na certeza de que tanto nós quanto eles somos “um processo”.
Somente Deus É o que É.
Paz e Bem!
Adaptado DAQUI
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