"NÃO EXISTE NENHUM LUGAR DE CULTO FORA DO AMOR AO PRÓXIMO"

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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Da religião que proíbe à graça que liberta


Não nasci quebrado, com defeito de criação. Não herdei o pecado de Adão – ele não me representa. Não aprendi a dar os primeiros passos, a engatinhar, sob o olhar zangado de Deus. Em meus primeiros tropeços infantis não tinha o mau cheiro do perverso. Minha infância foi leve, moleca, solta. Na mesa, meus pais repartiram um pão singelo conosco, seis irmãos.  Vovô e eu escutávamos o rádio madrugada a dentro. A gente queria notícias vindas da BBC de Londres e da Agência de Notícias de Moscou. Exilados brasileiros podiam nos comunicar sobre os acontecimentos que a ditadura boicotava. Com papai preso, ouvir o noticiário vindo de fora furava o cerco da censura.
Todo essa realidade caiu por terra quando entrei para uma igreja. Na puberdade, me ensinaram que eu era ruim. Aprendi que era mau e que a mão de Deus estava prestes a pesar sobre mim. Eu devia acordar para a necessidade de me arrepender. Aqueles anos gostosos da minha meninice me condenavam. A qualquer instante podia morrer. E se morresse sem me converter, queimaria eternamente no inferno.
Reconheço tardiamente: a religião forjou em mim uma espiritualidade calcada no terror. Passados tantos anos, mesmo fazendo terapia, ainda não consigo avaliar o impacto das fobias que a religião impõe a um garoto; como se alguém colocasse um espelho na minha frente e me ensinasse a ver iniquidade, torpeza, impiedade, em meus olhos tristes. Converter-me significaria aceitar que eu havia nascido debaixo da ira de Deus. E realmente acreditar que eu nunca prestei para nada. Desde o dia em que fiz profissão de fé, toda a espiritualidade se resumia a orar pedindo que Deus perdoasse uma multidão de pecados. Ingênuo e obediente, fui iniciado nesse caminho e nele permaneci. Eu, Ricardo Gondim, internalizei todos os medos da religião e adiei a vida.
Minha espiritualidade se construiu no negativo. Eu me contentava em cultuar a Deus como meio de celebrar apenas a sua misericórdia; sem jamais esquecer a etimologia latina, miserere e cordis – misericórida significa “voltar o coração para o miserável”. Em minha prática, eu implorava que Deus voltasse o coração para mim, eterno miserável. A função do culto se resumia a pedir perdão, quitar dívidas com uma lei perfeita e prometer: daquele dia em diante tudo vai ser diferente. Na semana seguinte obviamente tendo tropeçado nos cadarços da condição humana, voltava à estaca zero. E assim, de multidão de pecados em multidão de pecados, esperava que Deus não se zangasse comigo além da conta.
Internalizei  a mensagem do medo com radicalidade. Passei a me considerar irremediavelmente torpe. Contaminado e culpado pela desobediência de Adão, eu jamais conseguia sentir perdão. Quantos sermões repetiram: torto, pecador, porco lavado. Tratava as minhas poucas virtudes como trapos de imundice. Meu corpo, propenso à lascívia, só me levava a fazer o que eu não queria. Só poderia me considerar justo se me projetasse na justiça de Cristo. Em mim mesmo não passava de ímpio (perdoado, mas ímpio) –  e sempre a um passo de voltar à lama.
Alegria? Só comedida. Para não dar lugar à carne. Satisfação? Se cantar satisfação é ter a Cristo, prazer maior já visto. Prazer? Poucos: comer e dormir. Prazer sexual?  Depois que casar. O medo de infringir tantos mandamentos estreitou a minha vida. Deixei de ouvir boa música já que um crente verdadeiro não pode ouvir música do mundo. Não me permiti ler romances já que eram escritos por ímpios. Passei longe da poesia: como um filho de Deus pode se nutrir de sentimentos devassos? Catalogaram uma lista lotada de práticas abomináveis; tão vasta que eu me desesperava para cumpri-la. Além de não desejar magoar o coração de Deus, temia condenar a alma ao inferno.
Fui a um show da saudosa Mercedes Sosa. Um espetáculo monumental. Escrevi sobre o meu arrebatamento diante de tanta sensibilidade. Os fiscais da religião foram rápidos em franzir a testa. Disseram que agi como criança; um deslumbrado em um evento profano e vulgar. A crítica, todavia, veio tarde. Eu já não me indignava com os comentários de crentes alienados. Hoje, prefiro a ingenuidade do menino à sisudez do fariseu. Não tenho vergonha, nem medo, de gaguejar diante da beleza. Se alucino, devo aos anos em que a alegria me foi proibida. O belo ressuscita em mim sentimentos ilhados, mortos e amordaçados.
Na longa estrada da existência, a vida é breve. Quero viver. Confesso a minha incompetência de boxear com teólogos ilustrados –  principalmente os que sabem usar versículos para validar seus argumentos. Na verdade, nem quero estar perto deles. Porque tenho outras sedes no coração, almejo mudar de faixa. Anelo aprender a joeirar os cascalhos que uma falsa religiosidade me deu. Quero encontrar pepitas de uma beleza comum – que não respeita credo religioso. Pretendo alongar a minha vista por cima da cerca do preconceito religioso. Quero ir além do regionalismo que a subcultura produz – quero ir para arredores e exilar-me dos certinhos. Anseio desmontar intolerâncias. Procuro voltar atrás no relógio e ler autores que antigamente suspeitei.
Fazer as pazes com Deus significa mais do que rever pecados; saio do proibitivo e me arrependo de ter acalentado noções negativas sobre ele. Revejo conceitos para re-aprender que Deus se alegra quando celebro a vida. Só agora percebo: minha inadequação humana não me indispõe com a divindade. Meus tropeços não me condenam. Minhas tolices não me amaldiçoam. Mesmo imperfeito, sou apreciado. Não regurgito remorso. Não me chafurdo em falsas culpas. Celebro a minha humanidade sem a ameaça do fogo do inferno. Assim esboço algumas nuanças da graça.

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