Aline Morais, no Centro do Rio, em cenas do remake 'O Astro'. |
Tarde-noite no Centro do Rio, mas
poderia ser numa outra metrópole qualquer. O cenário em nada lembrava as lindas
canções de Tom e Vinicius. Na verdade tudo se parecia mais com um pesado samba
canção, daqueles de dor de cotovelo, composto no subúrbio, num ‘Divino’
qualquer.
Eram semblantes pesados,
preocupados, sofridos e cansados. Gente e mais gente acotovelando-se num ponto
de ônibus, mas poderia ser numa estação de trem ou metrô, ou ainda num píer de
barca qualquer, que levasse a lugar qualquer.
Não se falavam. Não se tocavam a
não ser pelo óbvio esbarrão que se sente nesse ambiente. Na verdade as caras
eram mesmo de poucos amigos. Os noticiários fomentam um medo coletivo que faz
com que o próximo... (ou seja, aquela pessoinha ao seu lado), não seja exatamente
seu ‘semelhante’, mas sim, na verdade, seu inimigo em potencial!
Em meio a fumaça de gazes tóxicos
‘permitidos’ emerge um coletivo amarelado, já lotado, com gente igualmente
cansada, aguardando pelo ponto seguinte onde mais ‘próximos’ entrarão fazendo
daquela viagem verdadeira sucursal do inferno.
Muitos vinham em pé. Na verdade eram maioria
absoluta. Certamente mais de uma centena de sofridos cariocas, alguns
fluminenses (e diversos imigrantes) se entreolhavam de rabos de olhos
certamente pedindo a um deus qualquer que aquela viagem logo tivesse fim.
Amendoim salgado, com casca ou
sem casca... bala halls, cerveja geladinha... promete a única voz que quebra o
gelo, isso se não considerarmos o ronco daquele motor volvo um grito. Alguns se
motivam e mastigam. Outros sedentos de mosto apenas aliviam sua sede de mais
nada, num lugar comum, numa viagem comum, numa vida incomum demais.
Até que uma criatura pequena, de
mãos dadas a uma idosa adentra como pode no coletivo. Os rostos em redor torcem
narizes, fecham as caras e maneiam as cabeças. Mais gente, e ainda por cima
velhinhas e crianças... Onde está o governo que não cuida do transporte urbano
de massa? Esse é o pensamento que permeia a mente de um ou outro, mas poderia
ser o pensamento de todos, em qualquer lugar caso vissem a cena.
Era uma menininha, aparentando
não mais que quatro aninhos ou coisa assim... Já o tempo que faltava à
menininha sobrava na velhinha que a guiava. Alias quem guiava quem?
Usava um vestido com rendas e
babados, como que remetendo a épocas passadas, onde tudo parecia ser mais
fácil, onde o engano se fazia presente apenas por despertar essa aparência.
A pequena pôs-se a cantar coisa
qualquer aos ouvidos desacostumados a melodias infantis. Ou seriam esses
ouvidos desacostumados a melodias quaisquer? A questão é que cantarolava sem
parar num pequeno fôlego só, cantigas antigas ou cantos novos
Mas sempre com aquela pequena voz
de quem mal fala, de quem mal sabe o que faz.
Até que uma senhora decidiu
abolir seus fones de ouvido e passou a fitar a pequena com olhar ao mesmo tempo
curioso e terno. Não demorou nem meio ponto de distância pra que ela mesma,
acompanhasse balbuciando errante a letra à pequena de vestido retro.
Agora o incômodo era maior. Não
fosse apenas a menina a cantar, mas era já uma dupla que oscilava entre as
canções diversas.
Um rapaz com pinta de office boy
com seu jeito peculiar passou a improvisar algo como que uma batucada de canto
de boca. A linha percussiva estava assim por se definir. Algum tempo que eu não
saberia precisar depois, o gelo estava completamente quebrado. A menina agia
quase como uma mestra de cerimônias e geria seu público com ares de quem o
fazia há décadas.
A viagem ainda demoraria muito a
dar cabo à agonia de contar com serviços públicos numa metrópole, mas agora,
entorpecidos pela inocência, pela alegria e pela vida da criança. Os adultos
estavam menos angustiados. Pra alguns, o final da viagem até chegou rápido. Pra
outros, demoraria o mesmo tempo, mas o fato é que o destino que levaria aquela
princesinha ali mudou a viagem e talvez a vida de muitos dos que viajavam no
ônibus.
Foram pra casa, pra faculdade,
pras igrejas, ou visitar as mães, mas agora o caminho era embalado por nova
perspectiva. Mostrando que uma canção pode influenciar não só um dia, mas
despertar a inocência perdida dentro de cada um, fazendo seguir em frente para
quem sabe focar a dor, ou a anestesia de viver amanhã mais um dia, em mais um
coletivo qualquer, em mais uma estrada qualquer.
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