Marcado por mudanças definitivas no meio social e político, o finalzinho dos anos setenta/início dos oitenta chegou para mim como algo meio preto no branco onde não dava para ficar em cima de muro, ao mesmo tempo em que minha cabecinha romântica absorvia com muita facilidade um turbilhão de acontecimentos que formavam as estruturas emergentes em substituição definitiva a um comportamento fortemente caracterizado por um sistema repressor.
Bandeirosa nas atitudes, porém sem ir às ruas levantar bandeira, ainda muito garota já demonstrava aversão a privilégios em atitudes claras e definidas, e, mesmo naturalmente doce, simpática e sorridente rss, não me pouparam alguns rótulos como “do contra” e “rebelde” - se bem que entre os mais íntimos e condescendentes, era chamada carinhosamente de espirituosa e irreverente. Bendito eufemismo rss
Ah, e se você pensa que eu vou discorrer sobre mudanças no comportamento sócio-político do meu país, está enganado, pois pra variar um pouco, (risos) estou mesmo é abrindo a minha alma ao trazer à tona certas reminiscências...
Aconteceu que para dedicar-me exclusivamente à vida familiar em certo período, tranquei o curso de Odontologia e fui viver um momento completamente diferente do das minhas amigas universitárias, tornando-me mãe muito jovem. Em seis anos de casada tive seis gestações, porém a minha primeira maternidade vingou somente na terceira gestação devido a abortos involuntários nas anteriores. E aquele sangue igualitário que corria em minhas veias já me inquietava ao antever os privilégios de todas as atenções que seriam naturalmente voltados ao primeiro que nascia.
Assim, tratando de providenciar como dividir tanta atenção acumulada em overdose de amor tive praticamente quatro bebês - como costumava dizer uma vizinha - pois quando o mais novo nasceu, o mais velho acabara de completar quatro aninhos no mesmo mês. Quatro bebês em crescimento concomitante, cada um com sua preciosa individualidade. Era uma verdadeira escola para mim no sentido mais amplo, pois é ao multiplicar a atenção, dividindo braços e colo, que se descobrem reservas incríveis de algo quase mágico. Infinito. Inesgotável.
Antenada e super atualizada, sempre busquei informações em fontes confiáveis que me auxiliassem a educá-los de modo que crescessem da forma mais saudável possível em todos os aspectos. Como morei pelo interior afora devido à função de meu marido, sem minha faculdade pra me suprir e me impedir de emburrecer, me valia de livros, revistas e jornais. Além de troca de experiência com amigas e pessoas mais velhas, claro. Dr. De Lamare com o clássico livro de ajuda “Meu Bebê”, foi quem mais me salvou em muitas situações embaraçosas de marinheira de primeiras viagens em um só pacote. Assim, eles iam crescendo e as pessoas à volta se admiravam do quarteto sob a minha (quase) exclusiva condução, pois o pai, muito ocupado e, frequentemente ausente, figurava mais como provedor delegando-me inclusive funções que eram dele. Ou de ambos.
Como costumava dizer aos curiosos de plantão, eu carregava um kit. Não “quatro em um”, mas “um em quatro”. Era como se eu visualizasse um só filho, de tão harmoniosa que era a nossa sintonia. (E aqui cabe a redundância da sintonia harmoniosa rss). Era assim que os via, com suas características bem definidas em meio às minhas ações. Das mais simples e cotidianas, às mais decisivas e cruciais, dentro de um contexto muito peculiar onde a decisão de cuidar de quatro bebês, quatro crianças e quatro adolescentes praticamente da mesma idade e com personalidades, anseios e desejos diversos, só são tarefas simples e prazerosas quando se enxerga neles o seu verdadeiro tesouro.
Quando bebês, eram quatro mamadeiras nas madrugadas. Crianças, quatro camas ocupadas simultaneamente pela mesma coqueluche. Pré-adolescentes, conflitos, broncas e curtição a quatro também; tênis, mochilas, diversões, viagens, judô, natação, brinquedos, escola, curso de inglês e de computação. Mimos sem extravagâncias. Conforto sem o luxo desnecessário. Pulso firme na hora certa. Informação na medida certa em amor que é sem medida. Uma busca diária e super dinâmica por uma convivência justa e imparcial. É certo que, de natureza meio impulsiva (meio?! rss) eu me descabelava quando os via se desentendendo, e também porque até hoje nunca soube lidar bem com desarmonia no lar, minando totalmente as minhas energias. Mas quando eles adoeciam... Eu desacelerava armando-me de uma força, uma calma e paciência tão grandes que assustava até a mim mesma. Era a hora em que eu dizia: Ôpa! Pára tudo!
Tenho saudade daquela época...
Não aquela coisa nostálgica de quem sente falta de algum pedaço, mas um saudosismo gostoso que me remete a um momento especial de enorme afeto, de uma dedicação extremada cuja lembrança me conforta e me diz muito do dever cumprido, o qual eu viveria novamente, do mesmo jeito, com aquela mesma paixão, aquela mesma vontade de me jogar naquela minha escolha clara e lúcida, de dar o melhor de mim, com todos os acertos e os erros que me impulsionavam a acertar de novo. E mais uma vez. E sempre...
Saudade boa. Lembranças que me enchem o coração de satisfação.
Saudade daquela entrega total e irrestrita, daquela cumplicidade, da confiança inocente em mim depositada de forma plena.
Taí! Desse privilégio eu gostei! Obrigada, PAI!
RF.
Herança do Senhor são os filhos;
o fruto do ventre, seu galardão.